quinta-feira, 25 de novembro de 2010

EDUCAÇÃO BILÍNGÜE: O INÍCIO DE UMA NOVA LUTA

Vilmar Silva

O bilingüismo parte do princípio de que o surdo deve dominar, enquanto língua materna, a língua de sinais, que é a sua língua natural, e como segunda língua a língua oficial de seu país. Nesse sentido, é de fundamental importância o convívio da criança surda com outros surdos mais velhos, que dominem a língua de sinais. Além disso, se os pais forem ouvintes, há a necessidade de que eles aprendam a língua de sinais, preferencialmente no convívio com as comunidades surdas, para garantir um ambiente lingüístico adequado à criança surda, tanto no contexto familiar como no social.

Para Goldfeld (1997), o ambiente lingüístico deve ser o mais adequado possível à criança surda, para facilitar a aquisição da língua de sinais e evitar o atraso da linguagem e todas as suas conseqüências, em nível de percepção, generalização, formação de conceitos, atenção e memória. E acrescenta que provavelmente “a língua de sinais será a língua mais utilizada na construção da fala interior e exercerá a função planejadora da linguagem, já que esta língua é mais fácil e natural para o surdo”.[1]

Já vimos que o oralismo e a comunicação total têm tido como principal objetivo a adequação dos surdos à realidade dos ouvintes. Contudo, na proposta de educação bilíngüe construída com a comunidade surda, o surdo não almeja essa adequação, pois enquanto minoria lingüística ele assume sua surdez como uma diferença histórica e cultural.

Portanto, a noção de que o surdo deve, a todo custo, tentar aprender a língua oficial de seu país em sua modalidade oral para poder se aproximar do padrão de normalidade colocada pelos ouvintes é rejeitada por esta proposta de educação bilíngüe, pois sua principal origem está justamente na luta histórica dos movimentos surdos em prol do reconhecimento da língua de sinais no processo pedagógico. Isto é, os surdos, pela primeira vez após o domínio secular do oralismo, passam a intervir na construção de uma proposta educacional que tem como foco principal o reconhecimento de sua experiência visual.

Porém, isto não significa dizer que a premissa de normalidade do surdo tenha desaparecido com a educação bilíngüe. Muito pelo contrário, existem propostas de educação



bilíngüe que conservam a visão oralista em relação ao surdo. Essas propostas geralmente procuram deslegitimar as línguas de sinais, usando-as enquanto instrumento para a aquisição da língua oral.

A compreensão que se tem é que as propostas bilíngües que tentam colocar em foco a língua majoritária sem refletir com a comunidade surda elementos constitutivos de sua educação - tais como: qual o currículo a ser adotado na educação de surdos? qual deve ser a modalidade da segunda língua, oral ou escrita? em que momento deve ocorrer a aquisição da segunda língua? - tendem a “ouvintizar”[2] o processo de luta da comunidade surda.

Segundo Skliar (1997), as comunidades surdas que estão refletindo sobre essa temática divergem de propostas unilaterais e defendem um bilingüismo que reconheça o direito da aquisição e do uso das língua de sinais, não para serem oralizados, mas sim para poderem participar com sua própria língua dos debates que circundam a sociedade atual, no mesmo nível de igualdade e de condições, porém reconhecendo sua singularidade e especificidade.

O posicionamento político dos movimentos surdos tem demonstrado que não existe uma proposta de educação bilíngüe pronta e preparada para ser usada em qualquer parte do mundo. Neste sentido, Skliar (1997) cita o pensamento de Paulo Freire, que é enfático em afirmar que nenhuma prática pedagógica pode ser transplantada:



Uma mesma compreensão da prática educativa e uma mesma metodologia de trabalho não operam necessariamente de forma idêntica em contextos diferentes. A intervenção é histórica, é cultural, é política. É por isso que insisto tanto em que as experiências não podem ser transplantadas, se não reinventadas.[3]



Não existe uma proposta de educação bilíngüe que possa ser transplantada universalmente, o que existe são processos históricos e culturais que produzem diferentes propostas de educação bilíngüe.

Um outro ponto a ser analisado na educação de surdos, segundo a Federação Mundial dos Surdos (WFD), está relacionado com o alto percentual de surdos fora do ambiente escolar, ou seja, aproximadamente 80%, situação que se agrava ainda mais nos países do Terceiro Mundo. Este dado, para Skliar (1998), deve no mínimo fazer com que os educadores de surdos (surdos e ouvintes) reflitam para quem estão sendo pensadas as propostas de educação bilíngüe, e nos força a afirmar que a educação bilíngüe, com seu projeto político-pedagógico, não deve se restringir apenas à escolarização de surdos. Ela precisa transcender o espaço escolar mediante políticas públicas que propiciem o desenvolvimento lingüístico dos surdos em diversos ambientes, que articulem os movimentos surdos regional e nacionalmente, que coloquem os surdos, no mínimo, no contexto da classe trabalhadora, tanto no campo de educação profissional como de mercado de trabalho, etc. Porém, uma parcela representativa de profissionais que trabalham com surdos acredita que



a desigualdade não dependeria de uma privação cultural dos surdos, mas de uma limitação de oportunidades sociais e educacionais. Assim, se exagera o papel da escola, supondo que as restrições econômicas e sócio-culturais existentes podem ser modificadas e reformadas dentro da instituição escolar, com o objetivo de alcançar uma relativa igualdade.[4]



Essa proposta humanista de educação bilíngüe tenta resolver ingenuamente um problema social e histórico apenas no campo educacional, esquecendo-se de que não basta aos surdos terem acesso ao conhecimento, mas precisam também transformar esses conhecimentos em instrumentos de luta que combatam as relações sociais de dominação.

A compreensão que se tem é que a educação bilíngüe não pode ser vista apenas como um ponto de chegada, mas sim como um ponto de partida, cuja perspectiva política reflita as condições sócio-econômicas, lingüísticas e culturais dos próprios surdos. É uma proposta que precisa ser construída com a comunidade surda, para que os projetos político-pedagógicos de educação bilíngüe não se restrinjam apenas à implantação de escolas, mas que possam aprofundar e criar de forma massiva as condições “de acesso a la lengua de senas y a la segunda lengua, a la identidad personal y social, a la información significativa, al mundo del trabajo y a cultura de los sordos”.[5]











Bibliografia



GOLDFELD, Marcia. A criança surda: linguagem e cognição numa perspectiva sócio-interacionista. São Paulo: Plexus, 1997.

MOURA, Maria Cecília. O surdo: caminhos para uma nova identidade. Rio de Janeiro: REVINTER, 2000.

SKLIAR, Carlos. La educación de los sordos: Una reconstruccíon histórica, cognitiva y pedagógica. Mendonça: EDIUNC, 1997.

. A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre, R.S.: Mediação, 1998.

. A escola para surdos e as suas metas: repensando o currículo numa perspectiva bilingüe e multicultural. Porto Alegre: UFRGS, S/D. Mimeo.

SOUZA, Regina Maria de. Que palavra que te falta? Lingüística e educação: considerações epistemológicas a partir da surdez. São Paulo: Martins Fontes, 1998.



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[1] Id., Ibid., p. 108.

[2] Skliar (1998) define o ouvintismo como um “conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte”.

[3] Carlos Skliar (1997). Un análisis preliminar de las variables que intervienen en el proyecto de educación bilíngüe para los sordos, p. 9.

[4] Carlos Skliar (S/D). A escola para surdos e as suas metas: repensando o currículo numa perspectiva bilingüe e multicultural, p. 11.

[5] Carlos Skliar (1997). Un análisis preliminar de las variables que intervienen en el proyecto de educación bilingüe para los sordos, p. 7.

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